Crónica de uma fraude anunciada


Circulam acusações de manipulação pela administração eleitoral e polícia a favor da Frelimo, que governa


Lázaro Mabunda Correspondente em Maputo


As sextas eleições gerais em Moçambique, a 15 de outubro, tinham vencedor antecipado: a Frelimo. O partido governante controla a administração eleitoral, a polícia, o setor privado e toda a máquina estatal. A Comissão Nacional de Eleições e o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) já tinham registado 300 mil eleitores-fantasmas em Gaza para favorecer a Frelimo. Conseguiram, ainda, selecionar fiéis para cargos de decisão nas mesas de voto.
Alguns receberam dinheiro da Frelimo, com uma recomendação: “Fazer bom trabalho.” O Expresso testemunhou, por volta das 21 horas de 13 de outubro, na cidade de Chókwè, presidentes, vice-presidentes e secretários de mesas de voto a receber 1500 meticais (21 euros) da Frelimo. Eram centenas, sob proteção policial, e retiraram-se ao aperceberem-se da presença de jornalistas.
Na mesma altura, a administração eleitoral emitia milhares de credenciais a organizações filiadas ou membros da Frelimo, em detrimento dos observadores da sociedade civil. Em contrapartida, o STAE bloqueou, em Gaza, a credenciação de 820 observadores da sociedade civil, nacionais e internacionais. O Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade (CESC) acusou o STAE de “bloquear a observação eleitoral pela sociedade civil”.
“Para ter ideia da gravidade da situação, a missão do CESC ficou acampada horas a fio, tendo-se retirado às 23h55 [do último dia de credenciação, 14 de outubro] da delegação Provincial do STAE. Dos 226 observadores previstos, cujos processos foram submetidos há quase 30 dias, foram credenciados 115. Além do CESC, mais de 500 observadores — incluindo os da organização de Anastácio Matavele, assassinado a uma semana das eleições, em Gaza — não foram credenciados, tendo os técnicos simulado reuniões na direção do STAE e falhas no sistema para camuflar a intenção de inibi-los.” O Instituto Eleitoral para a Sustentabilidade Democrática em África (EISA) queixou-se de não terem sido credenciados mais de 3 mil observadores seus.
O Boletim “Eleições” do Centro de Integridade Pública revela que em todas as províncias observadores independentes não foram credenciados. “Mesmo à Igreja Católica foi recusada a emissão de credenciais em Tete, onde há esforço coordenado para impedir a observação independente. Na Zambézia e Tete, milhares de observadores alinhados com a Frelimo foram credenciados para inundar assembleias de voto, enquanto aos independentes era recusada a credenciação”, reporta o CIP.
Polícia e observadores
São 17h30. O Expresso chega a Chibuto, Gaza. Das sete meses de voto da Escola Primária do bairro II, apenas três tinham eleitores. O cenário era o mesmo em toda a província. Alguns dos poucos observadores independentes avançaram a hipótese de serem as mesas que continham cadernos com eleitores-fantasmas.
À entrada da escola, dois agentes da polícia, armados, levantam-se. Um pega na arma, o outro dirige-se ao jornalista do Expresso. Passa perto sem dizer uma palavra. Quatro observadores de AMUC estavam sentados. Um levantou-se, caminhando em direção aos agentes, a quem deu orientações inaudíveis. A reportagem do Expresso aproximou-se da mesa de voto, sob olhar atento dos observadores afiliados à Frelimo.
Minutos depois, chega um jovem e para diante da escola. O observador da AMUC, em representação da Frelimo, comunica à polícia: “Aquela pessoa deve sair, chefe. É estranho.” O polícia concorda: “Tens razão. Tem de estar identificado como os ilustres aqui”, referindo-se aos jornalistas, para depois aconselhar o jovem a retirar-se. Era um observador da sociedade civil não credenciado e pretendia controlar à distância o apuramento parcial e possível enchimento de urnas.
Em Chókwè, maior círculo eleitoral de Gaza, um jovem sem qualquer identificação seguiu o Expresso por todas as salas por onde a reportagem passou. Observadores da sociedade civil afirmam que esta pessoa tentou agredir dois observadores internacionais. Noutra escola, perto da hora de encerramento das urnas, a administração eleitoral ordenou à polícia que detivesse membros da Nova Democracia, um novo partido, acusando-os de terem falsificado credenciais. Foram recolhidos mais de 20 jovens desta formação, cujo cabeça de lista em Gaza era o famoso músico Felix Manguane, conhecido por Refila Boy.
Uma professora na Zambézia contou ao Expresso que no distrito de Guruè foram credenciadas pessoas ligadas à Frelimo. “Deram credenciais falsas à minha irmã, minha prima e meu namorado para serem observadores da Frelimo e foram orientadas para votar no mínimo em 10 mesas”, diz. “Havia um produto que tira a tinta indelével num piscar de olhos”, permitindo que uma mesma pessoa “vote noutro posto como observador”. Acrescenta que “eram cerca de 500, na maioria professores. Foram credenciados da noite para o dia sem a mínima formação. Votaram inúmeras vezes”.
O relatório preliminar da Missão de Observação Eleitoral da União Europeia, publicado quinta-feira em Maputo, refere “grupos desconhecidos de observadores que obtiveram acreditação nos dias imediatamente antes das eleições”. O seu número cresceu “rapidamente de 10 mil para 42 mil, sem que a sua filiação fosse conhecida”.
Além de enchimento de urnas em Gaza, diversas publicações denunciaram pessoas encontradas com boletins preenchidos a favor do partido no poder. Outros casos são de aliciamento de delegados da oposição para facilitar a manipulação dos resultados. O CESC e outras organizações da sociedade civil referiram ameaças, incluindo de morte, por desconhecidos e pela polícia contra observadores.

EXPRESSO(Lisboa) -  18.10.2019


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