Foi primeito assassinado Carlos Ubisse confundido com Anastácio Matavel
A nastácio Matavele, silenciado há um mês
por agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM), era o tipo de homem
que, na história sobre os governos mais tenebrosos da humanidade, bate de
frente e diz as coisas com os próprios nomes, mas acaba abatido por regimes
autoritários. Numa das cartas ao presidente da República, em Abril do ano
passado, o activista de Gaza criticava a governação do país; falava da
“tremenda dívida [oculta] que nos envergonha como cidadãos”; e questionava os
incumprimentos de promessas eleitorais de Filipe Nyusi. “Durante a campanha
eleitoral de 2014 de que V.Excia foi digno vencedor, prometeu que, caso de
vitória, iria: 1) construir um aeroporto com dimensões internacionais; 2)
construir uma barragem em Mapai; 3) construir um porto; 4) concluir a estrada
Guijá-Chicualacuala, entre outras. Estando quase no fim do mandato, V.Excia
continua a assumir a concretização do vosso manifesto eleitoral?”, questionava.
Mas Matavele não viveu para ver as respostas de Filipe Nyusi. Foi morto por
ordens emitidas de dentro do próprio Governo do dia. Querido por uns e odiado
por outros, Anastácio Matavele era um homem sem rodeios nem hesitações. Em
Gaza, para a Frelimo, ele era da oposição, mas para a oposição, ele era da
sociedade civil. A sociedade civil estava dividida entre os que o criticavam
pela frontalidade e os que o elogiavam.
A sua família nunca se sentia tranquila com a sua verticalidade. “Mamã às
vezes lhe chamava atenção para o risco da sua frontalidade”, diz um dos filhos
de Matavele, visivelmente abatido e desesperançado. Com razão. O pilar da casa
ruiu. A partir de agora é enfrentar um futuro sem perspectivas. Ele foi
condenado pela ganância de alguns. Mas de uma coisa Matavele estava consciente:
a liberdade de expressão tem seu preço em países como Moçambique. E o preço
alto é o que ele pagou: assassinato violento à sangue frio, em plena luz do
dia. Na edição de hoje, o SAVANA traz alguns dos últimos pronunciamentos que
ele fez em eventos públicos. A 3 de Abril do ano passado, Matavele teria feito
um dos discursos mais contundentes dos últimos anos, no qual questionava a
governação e os incumprimentos de promessas eleitorais do presidente Filipe
Nyusi. Nesse discurso, intitulado: “Contribuição da Sociedade Civil à visita de
Sua Excelência Presidente da República”, Matavele, em nome do Fórum das
Organizações Não Governamentais Nacionais de Gaza (FONGA), disse que
“...queremos contribuir chamando a atenção de V.Excia para as seguintes
questões: a província de Gaza, com cerca de 1.500.000 habitantes, a terceira
mais pobre do país, continua a receber baixo Orçamento do Estado, condicionando
a provisão de serviços de qualidade, fraco investimento, descontinuidade e
disfuncionalidade de algumas infra-estruturas ou projectos de desenvolvimento
Ele apontou alguns exemplos concretos: “a estrada Caniçado / Guijá –
Eduardo Mondlane/Chicualacuala, com mais de 104km de défice, diz-se que não
existem recursos para sua conclusão; o Centro de Saúde do Distrito de Bilene,
diz-se, igualmente, que não há recursos; paralisado e sem vitalidade o projecto
da Fábrica de Processamento de Hortícolas que custou USD 2.430.036,87, cujas
obras iniciaram a 29 de Março de 2016 e deveriam ter terminado a 9 de Outubro
de 2016. Não há explicação!; uma infra-estrutura erguida pelo INSS [Instituto
Nacional de Segurança Social], destinada a turismo na cidade de Xai-Xai e que
custou avultados recursos dos cidadãos, está votada ao abandono”.
“Excia, continua a assumir a concretização do vosso manifesto eleitoral?”
No que chamou de segunda dimensão da análise, Matavele recordou ao presidente
Nyusi que, durante a campanha eleitoral de 2014, tinha prometido “construir um
aeroporto com dimensões internacionais, uma barragem em Mapai, um porto e
concluir a estrada Guijá- Chicualacuala, entre outras” e questionou: “estando
quase no fim do mandato, V.Excia continua a assumir a concretização do vosso
manifesto eleitoral?”. Na sua terceira dimensão de análise, Matavele questionou
Nyusi sobre o envolvimento do antigo presidente da República, Armando Guebuza,
na contratação de dívidas ocultas. “Excelência, o Governo de Moçambique tem
respondido com moderação ou mesmo prudente silêncio perante o desconforto da
opinião pública. (…) Gostaríamos de saber se: 1) o Governo [de Nyusi] apoia o
Governo de presidente Guebuza, o considera inocente, transparente ou houve
motivo forte que ditou o tal procedimento?; e 2) o Governo de V.Excia não
concorda com o Governo do presidente Guebuza e por isso quer que ele seja
responsabilizado civil e criminalmente e devolver o valor desviado (mal
contraído e mal aplicado)?”, problematizou. Sem qualquer resposta, Matavele
avisou: “Excelência, o silêncio para estas questões não vai ajudar o Governo em
todos os aspectos (factores PEST); Políticos, Económicos, Sociais e Tecnológicos,
podendo precipitar mudanças profundas nos próximos tempos.” Para ele, o que
seria preciso era que o Governo trouxesse “um rol completo, não só do estado da
dívida pública, mas das causas reais dessa dívida, a começar na nota exacta das
chamadas «empresas com o aval do Estado», a fim de se poder examinar com
justiça a contrição que o Governo pretende agora fazer”. Matavele esperava que
o Governo se apresentasse à população, “arrependido e purificado como uma
vestal, perante a Nação, que o sustenta e o paga.” Para isso, era preciso “o
rol de despesas, completo, sem sofismas, nem entrelinhas - um relatório exacto
do que tem sido a administração pública, ao menos depois da famosa Dívida
Oculta!” E acrescentou: “o que é indispensável é dizer ao país como se fez e
para quê se fez essa tremenda dívida que nos envergonha como cidadãos, como
país, a fim de se ver se o remédio está apenas numa famosa negociação com o FMI
[Fundo Monetário Internacional] e o Banco Mundial ou medidas moralizadoras
internas devem ser tomadas em consideração”
Sem resposta, Matavele recordou ao presidente Nyusi, o seguinte:
“Excelência, o país está à beira da ruína; o desgraçado consumidor a braços com
os impostos, que o levam à tuberculose e à miséria; o contribuinte cada dia mais
incapacitado de pagar as contribuições sempre crescentes; o proprietário
disposto a abandonar as suas actividades, votando os trabalhadores ao
desemprego e à marginalidade, queda do poder aquisitivo das pessoas comuns.”
Ele terminou alertando ao chefe do Estado para não olhar para a situação do
país com sofismas. “A situação do país exige um encadeamento reflectivo, com
grande maturidade, inclusão e sem sofisma!”, anotou o activista.
“Governo de Gaza é pior que quartel militar”
Numa outra apresentação que fez, no
dia 28 de Junho do ano em curso, com o título “Contribuição da Sociedade Civil
para a XXI Sessão do Observatório de Desenvolvimento da Província de Gaza”,
Anastácio Matavele comparou o Governo de Gaza a um quartel, dado ao seu
fechamento no acesso à informação. “Em relação ao acesso à informação, o
Governo de Gazaestá fechado e restritivo pior que um quartel militar”,
precisou. O Governo, segundo ele, continuava inacessível em muitos aspectos,
contrariando o princípio de comunicação e inclusão. Quando se vai às outras
províncias e até países, prosseguiu, o ambiente é, completamente, diferente.
Matavele reconhecia um esforço por parte da governadora, Stela Zeca, mas esse
esforço não está a resultar porque “a província de Gaza continua atípica e
bastante dolorosa.” Segundo Matavele, a governação em Gaza é marcada por forte
partidarização. Recentemente, a província elaborou um plano estratégico. O
finado afirmou que o referido plano estratégico de Gaza “vendeu problemas e não
oportunidades”. Criticou o facto de os eventos públicos e do Estado serem
transformados em cerimónias partidárias ou do Governo. Igualmente, fez crítica
à fraca presença e à “manipulação da fé de alguns cidadãos pelo Governo em
assuntos de impacto para as comunidades, o que exacerba conflitos”. Na
educação, acusou o Governo de “propalar o fornecimento de carteiras em todas as
escolas primárias, o que não é realístico”. Ademais, denunciou a existência de
“professores que ensinam em áreas inapropriadas à sua formação, quando existem
professores dessas áreas que não têm enquadramento.” E não só, mas também
professores que são “manipulados a abandonar as aulas para atenderem assuntos
políticos, como visitas, eleições, reuniões, etc.” Gaza é das províncias mais
pobres do país. Matavele, a voz dos excluídos daquela província, observou que a
zona norte de Gaza continua a enfrentar falta de água, fazendo com que a “água
dos charcos seja, normalmente, partilhada com o gado”.
População não viu USD 20 milhões
Em 2014, a concessionária das areias
pesadas de Chibuto desembolsou 20 milhões de dólares no âmbito do projecto.
Parte desse dinheiro (2.75%) deveria ser canalizado para os projectos de
desenvolvimento local, o que, segundo Matavele, não aconteceu. Igualmente, as
casas das populações reassentadas no âmbito do mesmo projecto “não correspondem
à memória descritiva e nem estão assegurados meios de vida e com as consultas –
inobservância da lei, sobretudo em termos do lume, compensações injustas,
curral para animais, falta mecanismo de diálogo entre os chineses e as
comunidades, e há agravamento das condições de vida”.
A Mark X era mesmo usada para matar
D o outro lado da barricada, quem se vê cada vez mais encurralado é o dono
da viatura usada no crime. O SAVANA já está de garantir que a viatura
pertencente ao edil de Chibuto, Henriques Albino Machava, era mesmo usada para
matar. E foi a mesma usada no assassinato de Carlos Ubisse, o agente da Polícia
que foi confundido com Anastácio Matavele.
O SAVANA já havia avançando estar na posse de fortes indicações de que
Carlos Moçambique Ubisse havia sido assassinado pelo mesmo grupo que matou
Anastácio Matavele, igualmente se fazendo transportar na viatura do edil de
Chibuto. No dia do assassinato de Ubisse, 23 de Setembro, a viatura de marca
Toyota, Modelo Mark X, com matrícula ADE 127 MC, estava nas mãos de Nóbrega
Justino Chaúque. Ricardo Manganhe, o suposto comprador da viatura do crime,
confirma que, nas vésperas do 25 de Setembro, o carro do crime estava com
Nóbrega Chaúque. “Disse que queria aproveitar fim-de-semana para tratar um
assunto”, disse Manganhe, que não precisou o “assunto” em causa. Carlos Ubisse
foi mesmo assassinado porque confundido com Anastácio Matavele. Os dois eram
vizinhos no bairro 2000, na cidade de Xai-Xai, capital provincial de Gaza. Além
da aparência física e da cor da pele, ambos tinham viaturas semelhantes. Ubisse
foi sequestrado em plena tarde, bem perto do quartel da Unidade de Intervenção
Rápida (UIR) e Grupo de Operações Especiais (GOE), no bairro 2000, em
Chongoene, e foi levado para Chibuto, onde viria a ser torturado e deixando
inanimado, pensando que tinha morrido. As populações locais foram lhe socorrer
após terem ouvido os seus gritos no mato. Levaram- -no para o hospital, mas
viria a perder a vida horas depois. Os restos mortais de Carlos Ubisse foram a
enterrar, em pleno dia a 25 de Setembro, na sua terra natal, em Mohambe,
distrito de Chibuto. O assassinato de Matavele teria sido ordenado no dia 19 de
Setembro por figuras ligadas ao Comando Provincial da PRM em Gaza, na mesma
semana em que o agente da Polícia e antigo comandanteda Polícia no Chókwè e
Chibuto, Carlos Moçambique Ubisse, foi raptado no bairro 2000, na Cidade de
Xai-Xai e torturado até a morte no distrito de Chibuto.
O “patinho feio” Desde que o SAVANA revelou, na semana passada, o
proprietário da viatura usada para assassinar Anastácio Matavele, que é o edil
de Chibuto, Henrique Machava, e o suposto comprador, Ricardo Manganhe, amigos
de longa data, uma nova narrativa foi posta a circular. Mas primeiro foi o
nervosismo de um edil que, encurralado, achou que se safava desacreditando a
investigação do Jornal. Machava e Manganhe não assumem responsabilidades da
viatura ADE 127 MC. O culpado agora é Nóbrega Justino Chaúque, o morto que não
pode acordar para se defender. A acusação é de Ricardo Amone Manganhe.
Claramente a ilibar o edil de Chibuto, Manganhe disse ao SAVANA, esta semana,
que a viatura em causa está em suas mãos desde Agosto deste ano, em virtude de
a ter comprado a 250 mil Meticais, dos quais até aqui conseguiu pagar apenas
200 mil. Estranha-se que, um mês depois, Henrique Machava e Ricardo Manganhe
não tenham sido ouvidos no processo que investiga o assassinato de Anastácio
Matavele. A liberdade dos dois, mas sobretudo do edil de Chibuto, é vista como
estando a proporcionar a manipulação de informação e provas a seu favor.
Questionado, esta quarta-feira, no habitual briefing da Polícia, sobre a não
audição do proprietário da viatura, o porta-voz do Comando Geral escusou-se a
responder a questão. Orlando Mudumane disse apenas que todos envolvidos serão
responsabilizados em função do seu grau de envolvimento no caso. Com a culpa a
ser atirada contra Nóbrega Chaúque, que não está mais entre os vivos, a dupla
Manganhe e Machava pode estarà procura de arrastar o caso para morte por culpa
solteira. Mas um jurista da praça ouvido pelo Jornal disse que a morte de
Nóbrega não significa a morte da culpa. Tudo depende da investigação. Mas o
jurista não tem dúvidas de estarmos perante mais um caso condenado à morte, por
envolver pessoas que não podem aparecer.
“As coisas estão muito claras. Mas como dizia Samora, quando o ladrão é a
Polícia, há-de se procurar aonde? Por detrás daqueles agentes da Polícia
existem pessoas que não se pode tocar”, lamentou. Sobre a investigação do caso,
incluindo suspensões e detenções, o jurista não tem dúvidas: “estão a nos
gerir. Estão a fazer do país um autêntico hospital psicológico e todos nós de
malucos”.
A emergência que durou três dias Sobre o assassinato de Matavele, Manganhe
disse que Nóbrega levou a viatura num sábado, dia 5 de Outubro, para devolvê-la
na segunda-feira, 7. Ora, 7 de Outubro foi o dia em que Anastácio Matavele foi
crivado de balas. Ou seja, o carro foi levado dois dias antes do crime e seria
devolvido logo depois da sua consumação. Mas Manganhe diz que não sabe de mais
nada. Só sabe que veio Nóbrega, um amigo de infância e irmão da igreja, que lhe
disse: “meu irmão, estou a pedir emprestado o carro porque tenho pressão do
serviço que não me permite resolver assuntos pessoais”. Manganhe diz que só
ficou surpreso quando tomou conhecimento do envolvimento do carro num crime de
sangue. O curioso é que a “emergência” de Nóbrega não cabia em horas, mas tinha
que ser feita em três dias. Quisemos saber de Manganhe como teria entregue a
viatura para uma “emergência” que desconhecia os detalhes, e que levaria três
dias. Manganhe respondeu que, dada a familiaridade, nem pensou no future
“Dada a vivência que vínhamos levando, não me ocorreu. Mas também o
considerava sobretudo como uma pessoa de autoridade”, disse. Manganhe afirmou
que nunca tinha suspeitado do “irmão” Nóbrega, cujos pais são afilhados do seu
tio. Nóbrega Justino Chaúque, de 38 anos de idade, era um dos cinco agentes que
tiraram a vida de Anastácio Matavele a 7 de Outubro. Nóbrega viria a morrer no
acidente após terem assassinado o incómodo activista de Gaza. Nóbrega era
natural de Chibuto, mas residia em Xai-Xai, no bairro Marien Ngoubi.
A detenção do comandante do GOE Esta terça-feira, 5, foi detido comandante
da companhia do GOE, em Gaza, Tudelo Guirrugo, no âmbito do processo-crime
sobre o assassinato de Anastácio Matavele, que se encontra ainda em fase de
instrução contraditória. Guirrugo foi detido à saída de um acareação com outros
arrolados no caso, incluindo um agente das Forças Armadas de Moçambique (FADM)
afecto ao centro de recrutamento das FADM e um agente do Serviço Nacional de
Investigação Criminal (SERNIC). A acareação durou das 11 até as 14h, altura em
que Guirrugo foi detido. O comandante da companhia do GOE, em Gaza, havia sido
suspenso pelo comandante geral da Polícia, Bernardino Rafael, a 8 de Outubro,
24 horas depois do crime que chocou o país e o mundo. Com Tudelo Guirrugo,
Bernardino Rafael suspendeu, igualmente, o comandante da subunidade da UIR, em
Gaza, Alfredo Macuácua.
*Título do blog
In SAVANA 08.11.2019
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